segunda-feira, abril 28, 2014

Reagan e Passos Coelho

O que têm em comum estes dois nomes: Ronald Reagan e Pedro Passos Coelho?

1. Ambos carregam um passado de encenação. Reagan pela sua anterior profissão de actor de cinema e Passos pelo seu passado na JSD (vivência de aparências e golpes), pelo seu fascínio pela ópera e acima de tudo pelo seu desejo de ser alguém no mundo dos palcos. Um foi actor outro ficou-se pelo wannabe.

2. Ambos aderiram ao modelo económico conservador, que acredita nos mercados livres como única forma de progresso da humanidade (pelo menos para 1% dela). Com as suas frágeis personalidades em constante mutação, bastaram uns esforços de doutrinação, e eles encarnaram os seus papeis com maior ou menor brilhantismo.

3. Ambos sentem a mais pura aversão ao Estado. Para eles o Estado bom é o que pura e simplesmente não existe, ou como diz a cartilha: "o que serve para fornecer a segurança dos bens e dos cidadãos e o que fiscaliza o cumprimento dos contratos." Tudo o resto deve ser entregue às corporações privadas.

4. O perfil de ambos segue paralelo num outro aspecto fundamental, os dois foram investidos de poder, ou seja a ambos foram entregues as rédeas do Estado que tanto abominam.

O que devemos esperar, quando o inimigo toma conta dos destinos do seu arqui-rival?
Certamente que não devemos esperar que o arqui-rival se fortaleça, se torne eficiente, se torne justo, que continue a cumprir o nobre objectivo de servir todos os seus cidadãos. O que devemos saber é que o objectivo final deles é o absoluto desmantelamento do Estado. Seja através de desregulação (como fez Reagan), seja através da privatização de serviços, seja através do nó górdio da dívida pública, que mais não é que o instrumento com o qual se conseguem executar todas as medidas anteriores.
Não é por mero acaso que o consulado Reagan registou o maior aumento do deficit público norte americano desde que há registos.
A dívida enfraquece. A dívida quebra a espinha. É com a dívida que se impõe a um povo a sua escravidão.
Foi precisamente por aí que Reagan começou o trabalho (continuado depois por democratas e republicanos até aos dias de hoje)
Passos Coelho aí fica atrás, porque "a obra" o precedeu. Não foi ele que deu o primeiro passo. A ele coube apenas a imposição das medidas, justificadas e tornadas urgentes com a dívida.

Os resultados deste modo de pensar a relação dos cidadãos com o Estado está infelizmente cada vez mais à vista e resume-se a uma palavra Desigualdade. Os EUA exibem com "orgulho" os piores números. A sociedade e a sua economia estão cada vez mais canalizadas em direcção aos que detêm as mega fortunas acumuladas em décadas de desmantelamento do Estado. Aos pobres é pedido que sobrevivam como puderem, e não incomodem, num país que já foi chamado "terra das oportunidades". As corporações são actualmente verdadeiros Estados dentro do Estado. Governam-se com leis próprias e manipulam a seu belo prazer os legisladores. Controlam todos os eleitos. Como dizia Marc Twain: "se as eleições servissem para mudar alguma coisa, ninguém nos deixaria votar".
Lembrem-se da frase anterior: " O Estado só deve servir para fornecer a segurança dos bens e dos cidadãos e fiscalizar o cumprimento dos contratos"
Só quando chegarmos a esta fase é que a cartilha ficará cumprida. Ainda existe um longo caminho a percorrer. Um longo calvário. 
Basicamente o Estado vai subsistir apenas nos tribunais (corruptos e manobráveis pelo poder económico, com já acontece hoje)
Tudo o resto vai ser preenchido pelas corporações privadas. E não se pense que elas vão ser eficientes porque vivem em concorrência umas com as outras e em concorrência os preços são automaticamente regulados "pela mão invisível". Esta pseudo-verdade perde-se porque em primeiro lugar os players desse futuro mercado global de serviços de cidadania, vão ser muito poucos e operarão no mais belo cartel que se possa imaginar, e em segundo lugar os preços só alguma vez baixarão, quando a qualidade do serviço também puder baixar porque acima de tudo o que contará para essas corporações são as margens de lucro que obtêm em cada serviço fornecido e em terceiro lugar, não olhem para a regulação para por ordem neste mercado "livre" porque os reguladores são escolhidos por quem deviam regular. 
Quando este cenário ficar completo e tudo funcionar como planearam os professores de Reagan e Passos Coelho, imagino que o planeta Terra, viverá uma civilização semelhante ao feudalismo mas operada em escala global.
Existirão uns palácios equipados com luxo e tecnologias ainda por inventar, espalhados pelos locais mais fabulosos do planeta, e por onde viajarão como turistas permanentes, uma elite monárquica (já constituída hoje) que concebeu o novo sistema social. O resto da população viverá à margem desses palácios, fornecendo-os em mão de obra, alimentos e outros serviços.

P.S. Os autores de ficção cientifica têm a particularidade de por vezes conseguirem descrever visões do futuro. O facto de se conseguirem concentrar intensamente no futuro partindo das regras, movimentos e estruturas sociais do presente, dá-lhes um poder quase extra-sensorial, de "ver" o que vem aí. Há inúmeros exemplos desta capacidade, sendo Júlio Verne o maior deles.
Actualmente de entre as visões do próxima civilização do "mercado livre", elegi como mais prováveis a das séries The Walking Dead, The Hunger Games e As Palmeiras Bravias.
Numa altura em que o conselho de ministros está reunido para decidir o que fazer à reforma de Estado imposta pelos mercados, dei por mim ontem a reflectir sobre o Estado, o progresso e a iniciativa privada.
Na minha opinião, a relação entre a fatia da economia que está na esfera pública e a que fica entregue às empresas privadas, deve acima de tudo ser a adequada ao estádio de desenvolvimento de cada país. Determinados rácios de desenvolvimento podem ser utilizados para definir esse estádio, embora eu opte sempre por usar os que mostram mais claramente as capacidades intelectuais da população. A percentagem de analfabetos (funcionais ou totais), os índices de leitura, a escolaridade, e outros que demonstrem o civismo (multas de trânsito, por exemplo) e a capacidade de intervenção social (voluntariado, activismo em ONG, associativismo).
Dentro desta perspectiva, é que eu vejo o problema português.
Será que o país pode dar-se ao luxo de ter um Estado mínimo?
Vejamos a questão de outro lado: quantos marcos de progresso obtivemos às custas do Estado que temos, e quantos se devem exclusivamente à iniciativa empresarial privada?
A reduzida mortalidade infantil - Estado
O acesso universal à electricidade, água e telecomunicações - Estado
A rede de transportes - Estado
O cartão pré-pago - PT (quando era Estado)
O cartão multibanco - (nasceu com a banca ainda nacionalizada)
Os parques naturais - Estado
O combate ao analfabetismo - Estado
A protecção civil - Estado
A segurança pública . Estado
A televisão - Estado
A vacinação - Estado
Os Descobrimentos - Estado
As reformas e pensões - Estado
A ciência - Estado (excepto a Gulbenkian e agora a Fundação Champalimod)

Bolas tem de haver alguma coisa do lado das empresas!
Já sei talvez a cortiça (não conheço bem a génese do negocio). Algumas marcas de sapatos (embora com ajudas do Estado à exportação). Os clubes de futebol (embora todos falidos e perdoados sistematicamente de pagar impostos).
Estarei a ver mal ou a balança está assustadoramente a pender para o lado público.
Ok, Então passemos a outra vertente. Se a esmagadora maioria do progresso social, tecnológico, e económico nos foi trazido pelo Estado, quem agora o pretende desmantelar para abrir alas aos mercados livres, não precisará de argumentos ainda mais fortes do que a Dívida?
Não seria obrigatório por exemplo que o grupo que nos aponta o novo caminho, nos indicasse por exemplo, um país onde já tenha sido aplicada esta "receita" e onde tenha sido pelo menos mantido o ritmo de progresso e inovação nas diferentes áreas?
Já nem falo no facto de um Estado mínimo liberalizado exigir um poder de regulação/independência que pode atingir valores assustadores, criando a dúvida, será que desmantelando o Estado, vamos poupar dinheiro?