terça-feira, novembro 14, 2006

Feito à Medida

O actual processo de Avaliação de Impactes Ambientais (AIA), pouco mais representa no panorama de licenciamento, do que um procedimento de contornos francamente surrealistas, no qual o Estado uma vez mais, se ausenta da sua competência de zelar pelo bem-estar do país como unidade territorial.

No actual processo, duas correntes se conjugam na perfeição. A primeira (o proponente) engana e ludibria a seu belo prazer, a segunda (o Estado português), que aceita ser enganado, por mera preguiça intelectual ou sob o peso de estar a prejudicar outros interesses mais importantes. Quais são esses interesses? Pois bem, será tudo o resto que possa surgir, excepto efectivamente o ordenamento do território e a sua componente ambiental.

Tudo começa logo torto com a filosofia que está nas raízes do decreto-lei que criou esta anormalidade – o Decreto-Lei n.º 69/2000 de 3 de Maio. A própria lei, diz que cabe ao proponente o encargo de elaborar o respectivo Estudo de Impacte Ambiental (EIA) ou adjudicar o mesmo a uma entidade competente. Com este início, como se pode esperar que o EIA seja efectivamente completo, rigoroso e que forneça todas as indicações necessárias para o Estado poder finalmente decidir?

Quer seja o proponente, ele próprio a elaborar o EIA, ou o mande elaborar a um consultor, jamais se poderá esperar que o mesmo reflicta a verdade. Não tenho conhecimento de que, que num qualquer ambiente de negócios, se espere que uma das partes admita todas as suas fragilidades negociais. Ninguém que esteja numa “mesa de negociações” irá dar o peso real que os impactes identificados em determinado projecto efectivamente apresentam.

O AIA, de acordo com o DL 69/2000 a AIA devia ser isto:

e) «Avaliação de impacte ambiental» ou «AIA» - instrumento de carácter preventivo da política do ambiente, sustentado na realização de estudos e consultas, com efectiva participação pública e análise de possíveis alternativas, que tem por objecto a recolha de informação, identificação e previsão dos efeitos ambientais de determinados projectos, bem como a identificação e proposta de medidas que evitem, minimizem ou compensem esses efeitos, tendo em vista uma decisão sobre a viabilidade da execução de tais projectos e respectiva pós-avaliação;

A realidade dificilmente poderia ser mais diferente.

A lei começa por definir o AIA como instrumento de carácter preventivo, que apontará possíveis alternativas para os projectos. No dia-a-dia o que se verifica é que uma grande parte dos projectos, encaram o EIA como um extra ao processo de licenciamento e executam-no já com quase tudo construído. Quanto à indicação de alternativas, basta lembrar-nos da triste comédia que foi o IKEA de Paços de Ferreira para perceber que quando alguém avança para um determinado projecto o sítio já está há muito tempo escolhido. É escolhido logo à nascença, e não há EIA nem outra coisa qualquer que o possa deslocar.

Só quando o proponente é o próprio Estado é que o local está sempre em aberto. É ao sabor de vontades privadas ou de cores políticas que se decidem os trajectos das estradas, nunca ou quase nunca a decisão final é tomada por razões ambientais.

A abertura que o Estado tem perante um EIA elaborado pelo proponente é a mesma que existe quando se tenta convencer um adepto do SLB de que o SCP tem um plantel superior e joga um futebol mais atractivo.

A alínea J) do artigo 1 define Impacte Ambiental desta forma:

j) «Impacte ambiental» - conjunto das alterações favoráveis e desfavoráveis produzidas em parâmetros ambientais e sociais, num determinado período de tempo e numa determinada área (situação de referência), resultantes da realização de um projecto, comparadas com a situação que ocorreria, nesse período de tempo e nessa área, se esse projecto não viesse a ter lugar;

Perante isto, alguém estaria à espera que um empresário descrevesse da mesma forma as alterações favoráveis e as desfavoráveis? Quem, onde e quando se elaboraria uma “barbaridade” dessas. Se calhar só a Madre Teresa de Calcutá, e mesmo ela teria de marcar audiência prévia com o Grande Arquitecto para pedir aconselhamento.

O que se pode ler em todos os EIA é uma sistemática depreciação de todas as situações de referência associadas a uma constante subvalorização dos impactes negativos que foram identificados. Quanto pior for a situação inicial menos graves serão os impactes negativos provocados, sejam eles quais forem e ao mesmo tempo maior será a magnitude dos positivos.

É com esta lógica que se classificam cursos de água que atravessam as áreas de implantação, como “depressões no solo por se faz o escoamento das águas da chuva”. Ou se classifica como terreno abandonado, degradado e cheio de silvas todos os que não estejam já impermeabilizados por construção.

O que não tem valor não pode ser prejudicado por esta pedreira, ou por este centro comercial, ou por este parque industrial, ou por esta urbanização.

O papel dos consultores é pois logo à partida definido, ou fazem um EIA favorável ao projecto ou não recebem o dinheiro e ficam com má fama entre o “mercado” de proponentes. Certamente que deve existir entre eles um rácio de projectos aprovados/desconformes que traduz-se num ranking dos melhores consultores. Arriscar fazer um EIA justo é, nestas circunstâncias, uma façanha muito próxima da dos samurais quando praticavam Hara-Kiri.

Depois de elaborado o EIA, ele é remetido à chamada Autoridade de AIA que nomeará a respectiva Comissão de Avaliação (CA).

A Autoridade de AIA tanto pode ser o Instituto do Ambiente (em projecto que constam no anexo I do DL 69/2000) ou as CCDR para todos os outros projectos.

Após ser nomeada a CA, compete-lhe uma das tarefas mais ingratas de todo o processo:

Artº 9

d) Proceder à verificação da conformidade legal e à apreciação técnica do EIA;

e) Elaborar o parecer técnico final do procedimento de AIA;

Considero-a a mais ingrata porque é nesta fase que os técnicos envolvidos nas CA, se confrontam com os “factos” inscritos nos EIA, elaborados por consultores especializados, em manobrar manto um nevoeiro espesso com que tentam dar o tom sempre cor-de-rosa ao projecto.

Algumas vezes as CA conseguem detectar as fantasias mas outras não. Penso que não devia ser assim.

O DL deixa outra “bela” ferramenta ao dispor da CA:

Artº 13

nº 4 - A comissão de avaliação pode solicitar ao proponente, e este pode tomar a iniciativa de propor, por uma única vez, aditamentos, informações complementares ou a reformulação do resumo não técnico para efeitos da conformidade do EIA, a apresentar em prazo a fixar para o efeito, sob pena de o procedimento não prosseguir, suspendendo-se, entretanto, o prazo previsto no número anterior, o que deve ser comunicado à entidade licenciadora ou competente para a autorização.

5 - Quaisquer outros pedidos posteriores de aditamentos ou informações complementares não suspendem o prazo do procedimento de AIA.

Quer isto dizer: a CA pode tirar dúvidas uma só vez. O que o proponente responder, não pode ser de novo questionado sob pena de os prazos serem ultrapassados (esta fase de verificação de conformidade têm a duração máxima de 20 dias úteis) e o EIA obter o respectivo deferimento tácito. A palavra-chave de todo este processo é não atrapalhar.

Recordo que é neste período de 20 dias úteis que se confrontam as verdades com as mentiras. Para quem nunca viu um EIA, revelo que só o volume principal, chamado Resumo Técnico, tem sempre mais de 200 páginas.

Esclareço também que a maioria dos técnicos envolvidos na emissão do parecer final da CA, não trabalha a tempo inteiro neste processo.

O Estado não devia promover as mentiras e as omissões. Devia exigir rigor. Não se devia criar, sob o capote da própria lei, uma situação em que a uns cabe a tarefa, ingrata para alguns, de mentir e os outros têm de descobrir as mentiras.

Nem devia ser preciso mentir.

Só que atribuindo ao proponente a execução do EIA, como já disse, é isso que inevitavelmente se obtém.

Estaria o legislador a contar que do lado do Estado estariam os técnicos mais competentes e atentos, que acabariam por desmascarar o tom rosa dos EIA?

Não creio. Quem conhecer minimamente o cenário em que se trabalha nas instituições envolvidas, percebe rapidamente que as fragilidades são muito maiores que a boa vontade que demonstram em resolver problemas.

Aliás outra coisa não seria de esperar quando se confrontam equipas de especialistas bem pagos, com um simples técnico da desprezada, desprestigiada, desequipada e tantas vezes desautorizada função pública.

O que me parece que esteve na origem deste infeliz DL, foi a tentativa, lamentável e totalmente conseguida de, através de um esquema que promove os truques de ilusionismo, enganar a frágil estrutura Avaliadora, conseguindo sempre fazer passar pelo crivo os projectos dos proponentes. Agindo assim, terão pensado eles, o ambiente não prejudicará a economia, tal como aconselha o George W. Bush.

Quem ganha com a actual situação?

  • No topo da lista estão, evidentemente, todos os proponentes. Graças a este esquema, a única coisa que perdem é algum tempo e dinheiro, mas valerá sempre a pena porque o resultado, (leia-se aprovação) estará praticamente garantida. É menos um risco que têm de assumir na gestão dos projectos.
  • De seguida vêm os consultores. Alguém já lhes chamou o lobi do ambiente. Pois sim. Graças a este esquema, o futuro está garantido a 30000 euros cada EIA (preço base). Existem já empresas especializadas nas diversas temáticas, que por exemplo, na área da extracção de pedras ornamentais já têm os EIA praticamente prontos mal o proponente entra nos seus escritórios!
  • Podia também colocar nesta lista de ganhadores, os potenciais empregos que os projectos criarão. Sem dúvida que quase todos os projectos têm como efeito “colateral” a criação de riqueza para o país e de empregos para a população. Estou muito distante dos fundamentalistas que não aceitam sequer que se mudem as pedras da calçada da avenida dos aliados. Mas também acho que as fábricas devem ser sempre construídas nos parques industriais criados para o efeito, que as superfícies comerciais devem estar sempre inseridas em meio urbano e não servir de pretexto para mais expansão urbana e as urbanizações residenciais só devem ser permitidas em aglomerados urbanos. Acredito que os rios têm de ser protegidos de descargas clandestinas e de ocupações construtivas nas suas margens. Enfim, coisas básicas mas que nem sempre são cumpridas nos projectos que se aprovam. Resumindo, acredito profundamente que respeitando estes princípios tão simples o país pode na mesma continuar a crescer, a produzir e a evoluir. Com uma diferença básica muito importante, passará a crescer bem. Sem desequilíbrios, ordenado. É por essa razão que não considero que os empregos criados e a riqueza criada sejam beneficiários desta situação. Eles acabariam por ser mais beneficiados se o AIA fosse mais rigoroso.

Quem perde?

  • Perdemos todos. Perdem os rios, perde o mar, perdem as serras, perdem as cidades, perdem os espaços rurais, perde a qualidade de vida.

Hoje (14 de Novembro de 2006), graças a este tipo de esquema que a administração usa para se aliviar das suas responsabilidades, tive a oportunidade de assistir ao cortejo fúnebre do ribeiro da Gandra, Vila do Conde.

Um projecto comercial vai financiar com muitas centenas de milhar de euros, o entubamento das águas pluviais que pertenciam ao ribeiro, ao longo de 2km de conduta enterrada até 300 metros da costa. Água limpa. Água da chuva.

Os mesmos euros podiam ser utilizados para recuperar o ribeiro. Para o despoluir, para o limpar, para o re-naturalizar, vão servir para lhe retirar água limpa.

Vão enterrá-lo, e por isso é fúnebre.

Foi o que escolheu a Junta de Freguesia, a Câmara Municipal e a CCDR. Abrigadas todas à sombra de um EIA feito à medida.